quinta-feira, 29 de novembro de 2018

A NATURALIDADE DAS COISAS...Porque crianças viram adultos mais seguros na Alemanha.


Produzido por Hysteria para Natura


Porque crianças viram adultos mais seguros na Alemanha, país que preza a cultura do corpo livre e a convivência com a nudez e as diferenças físicas com naturalidade desde a infância

Ela carrega o título acadêmico de PhD em Física pela tradicional Universidade de Leipzig, por onde passaram gênios como Goethe, Nietzsche e Wagner. Além do alemão, fala fluentemente inglês e russo. É loura e tem olhos azuis penetrantes, capazes de intimidar qualquer interlocutor. Ninguém duvida que seja uma mulher bem-sucedida: é considerada a mais poderosa do mundo; do alto de 1,65m, ela comanda há 13 anos o colosso industrial em que se transformou a Alemanha do século XXI e a própria União Europeia. Falo, claro, da chanceler federal Angela Merkel.

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Há poucas semanas, Merkel causou comoção ao anunciar sua aposentadoria em 2021. Seu rosto estampou todas as páginas de jornais, sites e revistas. Mas não só. Suas mãos também ganharam destaque midiático. Ela tem uma marca registrada que ganhou até verbete na Wikipedia, o Merkel-Rauter (losango de Merkel). Quando Merkel fala, as mãos unidas à altura do estômago formam um polígono. Escondem desconforto, evitam movimentos expansivos e dão cadência às palavras. Essas mãos, chamadas pela imprensa americana de “o triângulo do poder”, transmitem uma imagem de simetria, planejamento e eficiência.

Por que conto isso? Essas mãos (que eu diria de ferro!) também viraram notícia nas redes sociais. Em grupos de brasileiras na Alemanha no Facebook, várias integrantes observaram o fato de a chanceler federal ter unhas bastante curtas, sem sinal de esmalte ou qualquer outro adereço estético. Algumas se mostravam indiferentes; outras impressionadas pela “simplicidade” e houve ainda as críticas que apontavam “desleixo” pela falta de esmalte.

Meu primeiro impulso foi pensar “Quanta pequenez! Que bobagem!”. O segundo foi simplesmente ignorar. O terceiro… foi lamentar a supervalorização do corpo feminino ainda tão comum no Brasil. Quem disse, afinal, que uma mulher legal e bem-sucedida precisa ter unhas esmaltadas? Por que nós, brasileiras em geral, insistimos em adotar construções sociais que transformam nossos corpos em vitrines do desejo alheio? Que deflagram mecanismos de autodepreciação e inadequação perenes? Como abraçamos a (falsa!) ideia de perfeição vendida através de imagens manipuladas por computador nas revistas?

Felizmente, vejo hoje sinais de mudança nas novas gerações, acompanhados de um entendimento mais claro do significado de feminismo. Mas todas essas perguntas me perturbaram em silêncio por 37 anos; resignadas; rendidas à imposição de uma beleza quase inatingível, inspirada pelos ares praianos do Rio de Janeiro. Sempre senti-me obrigada a ser uma réplica tropical da Barbie. Claro, nunca consegui. As primeiras respostas vieram três anos atrás, quando troquei o céu azul da orla carioca de Copacabana pelos 50 tons de cinza de uma Alemanha fria e nada sexual, diga-se. De uma Alemanha onde nudez e erotismo são duas coisas completamente distintas; onde o corpo é nosso lar e, como tal, apenas um espaço que habitamos.

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Aqui, não é necessário ser “bonito” como nas revistas. Basta ser. Os indícios do abismo cultural que separa brasileiros e alemães vieram logo no primeiro verão. O país da chamada Freikörperkultur (FKK, cultura do corpo livre), colocou meus preconceitos, paranoias e valores em xeque. Eu, que me achava bastante cabeça aberta, não contive a surpresa, a risadinha e algum desconforto quando, pela primeira vez, fui me refrescar em um lago e deparei-me com centenas de banhistas felizes, entrando e saindo da água, tomando sol exatamente como vieram ao mundo, completamente nus – a coisa mais normal por estas bandas. Depois de meses de inverno e toneladas de casacos, a única coisa que importa é aproveitar ao máximo o calor dos raros raios de sol, um carinho sobre a pele.
Pensamentos depreciativos ou preocupações com a aparência? Não há tempo a perder com supérfluos. É preciso ser feliz como dá. Acostumados ao sol parco, mesmo durante boa parte do verão, os alemães sabem que secar-se naturalmente demora. Como detestam ficar úmidos ou molhados, mesmo aqueles que usam sungas, maiôs ou biquinis levam sempre uma muda de roupa seca na mochila para trocar antes de voltar para casa – o que significa que vão tirar tudo e se trocar ali, nus, na frente de todo mundo. Ou seja, vê-se por aí uma profusão de corpos ao redor sem nenhuma conotação sexual. E nada de corpos monumentais talhados em horas de academia, desses vendidos nas photoshopadas capas de revista. Apenas corpos altos, baixos, magros, gordos, grandes, pequenos, atléticos, flácidos, idosos, maduros, adultos, infantis. Demonstrações de vergonha, timidez ou desconforto? Zero.

Para uma “gringa” como eu, chega a ser desconcertante como corpos de todas as formas, cores e tamanhos não chamam qualquer atenção – apenas a minha, estrangeira pudica que, curiosamente, vem de um lugar onde estar nu durante o carnaval é aceitável, mas fazer um topless na praia? Jamais!

Cada um na sua. A nudez é algo tão natural como o simples ato de respirar. Não se repara nisso. Nas academias e ginásios esportivos, em geral, os chuveiros são coletivos. Não há boxes separando as duchas ou qualquer divisória que dê alguma privacidade ao usuário. E ninguém liga. Ninguém olha. Ninguém aponta ou comenta. Mães entram e saem com filhas e filhos pequenos juntos. Desde a infância, convive-se com a nudez e as diferenças físicas com naturalidade. Arriscaria dizer que essas crianças serão adultos muito mais seguros e felizes que a maioria de nós.

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Para uma “gringa” como eu, chega a ser desconcertante como corpos de todas as formas, cores e tamanhos não chamam qualquer atenção – apenas a minha, estrangeira pudica que, curiosamente, vem de um lugar onde estar nu durante o carnaval é aceitável, mas fazer um topless na praia? Jamais! Se “pepecas”, “piupius”, “bilaus” e outras gracinhas são tão comuns ao nosso vocabulário brasileiro, aqui esses termos não encontram equivalentes no idioma alemão. Para eles, não há motivo: o pênis ou a vulva alheios são apenas partes do corpo humano – e não de um objeto idealizado de desejo.

A integração às novas normais sociais é lenta. Demorei para compreender a diferença brutal com que os dois povos lidam com seus corpos. O que para um é sexo e malícia, para o outro é natureza em estado puro. Onde um vê luxúria, o outro enxerga “apenas outro”. Um exemplo bobo? Que atire a primeira pedra a mulher brasileira que nunca pensou dez vezes na própria imagem antes de aceitar qualquer convite para expor o corpo mesmo em trajes de banho. “Ai, a perna está depilada? E a virilha? Putz, deve ter uns pelinhos na axila! Ai, mas estou inchada. Ando meio gordinha.” Uma perene sexualização tropical nos exige e aflige. Aprisiona.

Enquanto isso, na contramão da nossa obsessão pela inalcançável figura perfeita, as alemãs, em geral, sequer imaginariam as “preocupações” com nossos “problemas estéticos” tão fundamentais. Afinal, a opinião dos outros sobre seu corpo não importa, não passa pela cabeça. Elas aceitariam o convite sem titubear se tivessem vontade. Assim, direto, sem pensar se há pelos ou celulite, sem divagar sobre a beleza, estética, peso, imposição social, moda ou coisa que o valha. A naturalidade deles desconcerta e nos chacoalha. Liberta.
E aceitar o próprio corpo é, talvez, a mais libertadora das experiências. Depois de muito relutar e exorcizar anos de neuroses, rendi-me à prática alemã de fazer sauna durante os meses do inverno rigoroso com amigos. Que fique claro: os banhos de vapor fazem parte da rotina de muita gente e, nas saunas, fica-se completamente nu. Segundo a cultura local, frequentar saunas com alguma peça de roupa é anti-higiênico porque vapor, suor e tecidos são um convite a fungos e, logo, a micoses e outras doenças.

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O início me foi penoso, confesso. Foi necessário muita coragem para despir-me mais do que de peças de tecido, mas de tabus, falsos moralismos e inseguranças acumulados em uma vida inteira. Consegui. Desencanei, em bom carioquês, quando olhei ao redor e vi tantas outras pessoas igualmente nuas e à vontade, apenas se divertindo. De repente, estar vestido é que não fazia mais sentido. A única preocupação ali é relaxar.
Sou, porém, uma exceção. A maioria dos colegas estrangeiros diz não ter coragem. Quando o assunto surge nas rodas de conversas, estrangeiros em geral coram, em meio aos risinhos nervosos – para incredulidade dos alemães, incapazes de entender como brasileiros, tão acostumados à pouca roupa dos trópicos, tendem a sexualizar a natureza e a enxergar vergonha no que deveria ser a mais fundamental matéria-prima da Humanidade: carne. Como resumiu um grande amigo durante uma sessão de sauna, indignado:

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“Não consigo entender como vocês no Brasil fazem tanto caso por causa de um pênis ou de um peito? Isso todo mundo tem! Não é nada de extraordinário!”

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