É fácil idealizar um tempo que já passou. E quanto mais longe, maior a viagem.
Com os anos 70 não poderia ser diferente.
Eu bem me lembro: já existiam bandidos (roubaram a minha Monark quando eu tinha 10 anos).
Nesta mesma época, levaram algumas joias da minha vó e um grupo armado invadiu a rua e atirou na casa do alemão Hantz.
Também havia acidentes de trânsito e atropelamentos. Meu amigo David, filho da dna. Vera da casa da esquina, foi jogado na calçada por um carro enquanto jogava futebol.
Claro, também existiam coisa boas e a principal delas era a liberdade para jogar bola no meio da rua ou dar a volta na quadra de bicicleta.
Censura e violência militar
Não dá para falar nos anos 70 no Brasil sem mencionar o controle que o governo militar impôs ao país.
A censura representou a marca da ditadura brasileira e alcançou o seu auge nos anos 70.
Enquanto nos final dos anos 60 algum tipo de crítica ainda era “tolerada”, nos 70 a censura alcançou o seu nível máximo de irracionalidade.
Para tentar enganar os censores, autores de peças de teatro, jornalistas, cantores, humoristas, cineastas foram obrigados a criar algumas estratégias.
Como o jornal O Estado de São Paulo (que apoiara o golpe de 1964), ao substituir as matérias cortadas por versos de Camões e receitas de bolo.
A censura chegou a um tal nível de paranoia que muitas informações eram descobertas através dos próprios censores, que emitiam notas às redações proibindo a publicação de notícias que nem os próprios jornalistas tinham conhecimento.
A morte do jornalista Wladimir Herzog nas dependências do 2ª Exército, em São Paulo, em 1975, determinou o começo do fim do regime militar.
Censura brasileira: controle sem nenhum critério terminou virando piada
Governo militar definia o que era bom para o “povo” / Revista Veja / Janeiro de 1970
O Pasquim e o Louvre
Com uns 12 anos eu ia até a livraria du Louvre – que ficava ao lado da igreja São Sebastião –comprar o Pasquim. Confesso que a minha maior motivação era ver as mulheres peladas.
Mas depois passei a me interessar pelos textos e pelo material “subversivo” e debochado do Pasquim.
Criado pelo cartunista Jaguar e pelos jornalistas Tarso de Castro e Sérgio Cabral, O Pasquim foi concebido para ser um “jornalzinho” de Ipanema, mas acabou se tornando uma das mídias mais influentes dos anos 70.
Logo nas suas primeiras edições já vendia entre 20 a 30 mil exemplares, chegando a impressionantes 200 mil exemplares, distribuídos por todo o Brasil. Isso no meio dos anos 70.
Ficaram para a história do jornalismo brasileiro as entrevistas com Leila Diniz (a primeira) e Ibrahim Sued — quase todas em bares da zona sul do Rio de Janeiro, turbinadas com muito uísque e palavrões.
Ainda no ano de 1970 toda a redação do jornal foi presa. E nos anos seguintes, os extremistas, ainda mais à direita do regime, explodiram as bancas de jornais que vendiam impressos “alternativos de esquerda”.
O Pasquim não resistiu.
Uma das capas mais famosas: Todo paulista – que não gosta de mulher – é bicha
Monareta x Berlineta
Acredite, na década de 70 os pais “largavam” os seus filhos para brincar na rua.
Era um tempo de muito futebol (Brasil tri-campeão do mundo) e das bicicletas.
As mais cobiçadas eram a Monareta, da Monark, e a Berlineta, da Caloi.
A Monareta era a minha favorita, não só por ter um design mais moderno mas também por e não ter o problema da Berlineta, dobrável, que enferrujava e se partia em dois.
Da minha memória nunca vai sair o dia em que eu perdi a unha do dedão do meu pé direito ao tentar frear “na marra” a minha Monark numa descida de uma das ruas do bairro Petrópolis.
Brasília x Chevette x Fiat 147
Eu era fanático por futebol— e por carros. Mais do que eu, só o Tony, irmão do David, que passava o dia mexendo no FNM/Alfa do pai dele.
O Tony tinha quase toda a coleção de 4 Rodas, umas duas pilhas enormes de revistas, que me deixavam fascinado.
Nos anos 70 a indústria de automóveis do Brasil deu um salto, principalmente através dos novos “carros compactos” (leia-se Chevette, da GM; Brasília, da Volks e Fiat 147).
A Brasília tinha um apelo mais popular, ainda ligado à imagem de robustez do Fusca, enquanto a GM optou por um carro com um conceito um pouco mais “sofisticado”.
Lançado em junho de 1973, a Brasília vendeu 947 mil unidades (fonte: Volkswagem). Foi o primeiro carro, em larga escala, desenhado no país. Acabou em 1982, atropelado pelo Gol.
O Chevette chegou dois meses antes, em abril de 73. Era uma adaptação brasileira do Opel Kedett C, da GM alemã e vendeu cerca de 1,6 milhão de unidades (fonte: GM do Brasil).
O carrinho da Chevrolet foi produzido até 1993, quando saiu de linha para dar lugar ao primeiro Corsa.
O Fiat 147 apareceu um pouco depois, em 76. Era uma novidade no Brasil, até então dominado pela Ford, GM e Volkswagen.
Com uma forte campanha publicitária, o primeiro Fiat brasileiro vendia bem, até o consumidor descobrir que o carrinho tinha um câmbio simplesmente medonho.
Por muito pouco ele não acabou com a imagem do fabricante italiano no Brasil.
Corcel x Passat
Esses dois modelos também fizeram história nos anos 70.
Quando meu pai comprou um Corcel quatro portas foi uma festa.
O Corcel (1968/1985), foi o primeiro carro médio da Ford e surgiu para ocupar um espaço na “nova classe média”, do “milagre econômico” do governo militar.
Já o Passat, da Volks (1973/1988), outro veículo médio, era um veículo muito mais moderno, voltado ao público jovem.
O Passat TS, “esportivo” era o sonho de quase todo o público masculino entre os 18 e os 30 anos.
Afiador de facas, casquinha e o sorveteiro
Muito antes das facas Ginzo 2000 e dos afiadores da Tramontina, existia um profissional que anunciava o seus serviços tocando uma gaitinha de boca.
Mesmo na década de 70, o afiador de facas já era uma figura meio deslocada no tempo. Afinal, a classe média já podia comprar uma dúzia das modernas facas de serrinha – que dispensavam a “afiação”.
Eu não tenho bem certeza da origem do vendedor de casquinhas, aquela massa enrolada, bem fininha, feita de água, farinha de trigo e açúcar.
Mas em quase todo o Brasil ele trazia um imenso cilindro preso ao ombro por uma tira de couro, batendo um ferro numa placa de madeira que trazia nas mãos para anunciar o produto.
Finalmente, o sorveteiro. Da Kibon, é óbvio. O som inconfundível da corneta era o terror de todos os pais, principalmente quando tocava antes da hora do almoço.
Os principais produtos eram o picolé de chocolate, o Chicabom, o Eskibon e o meu preferido: o copinho Carioca (meio chocolate/meio creme), que vinha com uma pazinha de madeira.
Moda esquisita
Espero que nunca mais volte o mal gosto estético dos anos 70.
Quem pode achar bonito a combinação entre uma calça boca de sino, uma camiseta curtinha, mostrando a barriga e sapatos imitando couro de jacaré? Num homem!
Nem vou falar dos coletes, dos sapatos de salto alto, paletós xadrez e das costeletas.
Pornochanchadas e sexo
Foi duro ser um pré adolescente nos primeiros anos da década de 1970 no Brasil militar.
O nu frontal era totalmente proibido. Seios? Só um. Não… eu escrevi certo… seios só eram permitidos se aparecesse apenas um “exemplar”.
O único meio de expressão na qual era admitido “algo mais” era o cinema.
Surgiu assim a pornochanchada, filmes soft, produzidos na “Boca do Lixo”, no centro de São Paulo.
Música brega x MPB
O mercado da música era dividido basicamente entre a música brega (Odair José & cia), a MPB (Chico Buarque, Caetano, Gil & cia) e as “românticas” (Roberto Carlos & cia).
Uma Vida Só, ou mais conhecida como “Pare de tomar a pílula”, cantada por Odair José, foi o símbolo dos anos 70.
Defendia o direito da mulher em não tomar a pípula, “por que ela não deixa nosso filho nascer”. Puxava o saco, ao mesmo tempo, dos militares e da ala conservadora da Igreja Católica.
Do outro lado, a MPB fazia o papel de crítica ao regime.
Assim, Angélica, de Chico Buarque, pode ser considerada o contra-ponto de Pare de tomar a pílula.
A música fala de Zuzu Angel, estilista carioca que teve o filho, Stuart Edgart Angel Jones, torturado e morto na Base Aérea do Galeão, no Rio de Janeiro.
Stuart foi amarrado e arrastado por um jipe militar, com a boca no cano de descarga do veículo, no pátio interno do quartel.
Cigarros, um raro prazer!
Quem não fumava era bundão. Quem não experimentasse um bagulhinho (cigarro de maconha) era cagão.
Os 70 representam o auge da indústria tabagista e do consumo de cigarros no Brasil.
Era para gente que sabe o que quer (Minister), era o sucesso (Hollywood), um lugar de aventura e liberdade (Marlboro).
A propaganda era liberada e, acredite, muitas vezes associada ao esporte! Tanto quanto hoje a cerveja é ligada ao futebol (outro absurdo).
Havia cigarros fininhos (More e Chanceler); cigarros com menta (Consul): longos (Charm); populares (Continental, Hollywood, Vila Rica); de baixos teores de nicotina e alcatrão (Galaxy).
Nada ficou tão marcado nesta época quanto o comercial dos cigarros Vila Rica, na qual o tri campeão de futebol Gérson aparecia dizendo: “gosto de levar vantagem em tudo, certo?” – que ficou marcado como a “Lei de Gérson”, o brasileiro sem ética, que faz qualquer coisa para ter o que deseja. Uma crítica bem injusta, já que a frase pode ter outras interpretações também.